quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Conclusão

Não faz o menor sentido escrever. Virginia e tantas outras morreram disso. Quereria o mesmo destino? Entre letra e espírito, o que afinal há? Essa sombra, essa coisa escura e difusa que antecede a palavra e... se torna Literatura. Mas eu, eu... eu. Terminei de começar recém! E já tenho 37 anos... Vou parar justo agora?

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Breve Couto ao Mia

(Eu) Mia. Quer dizer, posso lhe chamar de Mia? Ah, obrigado. O seu Jerusalém foi publicado no Brasil (Cia das Letras 2009) com o título Antes de Nascer o Mundo? Você está por detrás disso? Por que esse título?

(Ele parecia calmo agora. Chegou contrariado de dentro do armazém do cais, onde recém sofrera uma entrevista um tanto caótica, com gente lhe perguntando sobre o seu escrever, a guerra, a democracia da África, assim despudoradamente - e com bem mais que apenas três pessoas a sua volta, o que de início ele já declarou a dificuldade. Tratava-se de uma situação artificial demais para alguém que escreve Terra Sonâmbula... Mas agora estava calmo. Apenas a perna: ela balançava insistentemente para frente e para trás. Pareciam querer por-se a caminho, mas eu não o percebi de todo naquele momento.)

(Mia) Esse título... sim, acho que está no texto. Não foi difícil escolhê-lo.

(Ele já dava por respondida a pergunta.)

(Eu) Mia... por favor, fala mais, agora somos só eu e você aqui.

(Ele ponderou. Olhou para os lados. Atravessou o Guaíba numa mirada. Soltou um fôlego de alívio, eu acho. Não parecia aborrecido, estava mais para abensonhado...)

(Mia) É. Na verdade é bem diferente e, ao mesmo tempo, nem tanto. Jerusalém é o nome de um não-lugar. Um lugar que é todo uma negação. É como se a própria fuga achasse um lugar apropriado para permanecer, sem movimento, sem direção. Ali, ela é. Mas "antes de nascer o mundo" remete ao narrador personagem do livro, o Mwanito. Jerusalém, quem a funda, é o pai (risos, acho que por conta da cacofonia). E esse mundo que está por nascer é de Mwanito, em primeira mão. Esse deslocamento de sentido que o título sugere na versão brasileira é interessante. Completa algo a Jerusalém.

(Eu) É bom ouvir você falar.

(Mia) Por que? (risos).

(Eu) Eu me emociono em perceber sua busca por expressões. Imagino seu laboratório interior durante a escrita, cuja produção é tão intensa. Eu já lhe disse que o seu texto me devolveu a minha língua-mãe?

(Mia) Você havia rompido com ela?

(Eu) Não, acho que era coisa de menino. Não a tinha percebido ainda tão... "materna". Minha mãe foi o único lugar que eu tenho certeza que estive. E, de repente, sinto o mesmo em relação a minha língua... Decidi me tornar fluente em minha mãe...

(Ficamos em silêncio durante um pouco. Eu fumei um cigarro e petisquei alguns camarões. Enquanto isso, ele elogiava a cachaça que eu o havia presenteado e que ele havia servido para nós ali mesmo.)

(Eu) Mia. Você escreve sobre as mulheres de uma maneira tão triste. Quer dizer, estou pensando na Marta de Antes de nascer o mundo (e haveria outra?), e na tristeza dela. O que você me diria se eu lhe dissesse que encontrei na forma que você a constrói uma espécie de...

(Mia) Fundamento?

(Eu) Não. Eu chamaria de revelação...

(Mia) Ah, sim! Você é teólogo até quando faz entrevista? (Risos) Mas é isso mesmo. Se revelação ou fundamento, tanto faz, estou pensando no caráter mítico da mulher a que o texto em torno de Marta remete. Ela é um personagem síntese da experiência, assim como eu a percebo, do ser mulher em Moçambique. Aliás, vamos falar de Moçambique, certo? Eu não escrevo da África. Essa singularidade não existe.

(Eu) Certo, eu concordo contigo, e gosto dessa percepção modesta que você, na verdade, nem precisaria me solicitar, porque isso também está no seu texto.

(Mia) Ah, obrigado! Eu me sinto mais leve assim! As pessoas me dirigem a todo momento perguntas e observações sobre a África, mas eu que sou de lá desconheço essa grandeza!

(Eu) Mia, quero ler um trecho de seu livro:

Sob o céu africano volto a ser mulher. Terra, vida, água são do meu sexo. O céu, não, o céu é masculino. Sinto que o céu me toca com todos os seus dedos. Adormeço sob a carícia de Marcelo.  E escuto, longe, os brasileiros acordes de Chico César: "Se você olha pra mim eu me derreto suave, neve num vulcão...".
Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos.
Mia COUTO, Antes de nascer o mundo, (Cia das Letras, 1.reimp., 2010), p.141. 

(Mia) Belo. Fui eu quem "escreveu" isso? (Risos).

(O que ele seguiu dizendo foi maravilhoso, assim num tratamento de si mesmo como um outro, ora terceira pessoa, ora segunda. Tanto que eu me perdi de anotar. Lembro-me apenas dele frisando ao final, numa conclusão inesperada: o autor é sempre menor que seu texto; é assim que vive a literatura.

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Entrevista imaginária cedida pelo biólogo e escritor moçambicano Mia Couto, no cais de Porto Alegre, 11 de novembro de 2012, entre 6 e 7 da tarde, ouvindo Mayara Andrade, bebericando cachaça de rolha e petiscando camarão seco no vatapá. (Não, não tinha chima nem churras).





terça-feira, 13 de novembro de 2012

Falando em Drummond, olha isso...

Na série que iniciei sobre a 58a Feira do Livro de Porto Alegre (e aproveitei para retomar atividades neste blog!), comentei a Antologia poética de Carlos Drummond de Andrade, com a qual estou me deliciando e rompendo uma cruel e displicente ignorância acerca da obra desse grande nome da literatura brasileira. Bom... gostei muito do poema Aspiração, publicado em Claro enigma, de 1951, que está entre os últimos recolhidos por Drummond sob o título Um Eu Todo Retorcido, com o qual ele abre sua antologia. Para saborear ainda mais o texto, o transcrevi abaixo, e que seja semente levada pelo  vento...

* * *

ASPIRAÇÃO

Já não queria a maternal adoração
que afinal nos exaure, e resplandece em pânico,
tampouco o sentimento de um achado precioso
como o de Catarina Kippengerg aos pés de Rilke.

E não queria o amor, sob disfarces tontos
da mesma ninfa desolada do seu ermo
e a constante procura de sede e não de linfa,
e não queria também a simples rosa do sexo,

abscôndita, sem nexo, nas hospedarias do vento,
como ainda não quero a amizade geométrica
de almas que se elegeram numa seara orgulhosa,
imbricamento, talvez? de carências melancólicas.

Aspiro antes à fiel indiferença
mas pausada bastante para sustentar a vida
e, na sua indiscriminação de crueldade e diamante,
capaz de sugerir o fim sem a injustiça dos prêmios.

- C.D.A, Claro enigma (1951).

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Drummondiando

Na série "58a Feira do Livro de Porto Alegre", encerrada há poucos dias, sigo com anotações dos livros adquiridos este ano, a Antologia poética de Carlos Drummond de Andrade (Cia das Letras, 2012).

Este ainda está sendo lido, porque poesia, a mim, pede uma leitura mais relapsa e distraída. Em todo caso, me chamou atenção que esta antologia é selecionada pelo próprio Drummond que, tal como explica na introdução, procura reconhecer "temas recorrentes" que perpassam suas obras. Chega, então, a nove temas que misturam e combinam a cronologia de sua obra a partir do que o poeta reconhece (e confessa) entre seus motivos de escrita.

Eu nunca havia lido sistematicamente Drummond. Meu imaginário acerca dele se resumia a um tal José, uma pedra no caminho, e uma rosa no asfalto. A idéia da aproximação ao poeta da Rosa do Povo foi dada por um colega de oficina literária, a quem devo a gratidão pelo impulso... (tudo no Visa, ai, ai)

O que me impressiona - isto ainda nas primeiras páginas - é a leveza e o movimento do texto. Sua liberdade poética traduz-se com responsabilidade. O verso livre torna-se, com ele, um estilo a que se chega, não do qual se parte, definitivamente. Essa é uma lição importante para mim, e que me reforça a disposição ao trabalho minucioso de esculpir cada momento, combinação e respiro dos versos.

Antes da folha de rosto, esta edição de Antologia poética traz fotos de Drummond. A última delas é de 1981, onde ele está com a esposa e o neto. Há um sorriso no rosto, e o olhar preso ao chão. Depois de ler a primeira seção de poesias reunidas sob o título Um Eu Todo Retorcido, eu voltei a essa foto e anotei ao lado:

"Como Drummond
numa antiga foto de família,
de sorriso poético a mirar
o chão das coisas".

Estou lendo sua poesia para buscar referências para minha própria escrita. Mas se pudesse crescer, e quando crescesse, queria ser como ele - ou melhor, como sua poesia.

PS: o que ele estaria olhando naquela foto? Uma rosa brotando no asfalto?


domingo, 11 de novembro de 2012

Encerra a feira, ficam os livros

São 58 edições do maior evento literário a céu aberto (isso quer dizer, de rua, popular, democrático?) da América do Sul. Logo ali, na Praça da Alfândega, centro histórico da capital gaúcha. Um evento singular porque consegue ser despretensioso.

Este ano foram cinco livros. Vou falar do primeiro lido, a autobiografia literária de Cristóvão Tezza, O espírito da prosa (Record, 2012). Baita livro. Comprei por recomendação do professor, que prefiro manter como escritor, Charles Kiefer. Tezza começa propondo-se "a" pergunta: por que escrever? Evidentemente, não a responde. Mas desenvolve deliciosas páginas contando de como acabou escrevendo, e estabelecendo-se nessa condição da escrita - que, no fim das contas, é um jeito de se colocar no mundo, na própria língua.

Adorei o livro, embora seja eu muito e por demais suscetível. É de desconfiar sempre. Mas, se tem algo que permanece em mim é o efeito orgânico que Tezza consegue dar à literatura desde o lugar de quem a produz. Sinto-me definitivamente escritor desde sua leitura... o que é sintomático, já que sentimento esse deveria ser antes e sempre produto do escrever e não do ler. Mas minha autonomia é assim, compartilhada, e não me envergonho disso.

Há trechos e trechos para serem ruminados. A referência que faço é para o que Tezza (não sei em que páginas porque abandonei anotações desta vez) sugere sobre sua resistência a terapia. É. Simples assim. Ele diz nunca ter feito terapia porque receia que, com sua cura, perderia o elã da escrita. Doentio? Não sei, mas gostei. Além de econômico, produtivo. E soa também um tanto romântico, a ideia aquela do escritor fustigado existencialmente, possuído pelo gênio, mediador. Mas bem compreendido, acho que é isso mesmo. Ouvindo, hoje, Mia Couto, a mesma ideia repercutiu...

Mas, é claro, essa mediação pode ser entendida de várias maneiras. Se menos messiânica e heróica, sugere a figura de Quiron, aquele que torna sua própria ferida possibilidade de cura a outros. De resto, tem de se imaginar. Escrever por que? E a pergunta é assim mesmo, "por" e não "para" que, porque não há outra razão e  endereço que este outro mais próximo, o si mesmo.