segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Liberdade


Escrevi, certa vez, uma nota poética que intitulei Liberdade Condicional. É assim:

porque sinto a falta
quando pleno
      sigo
de mãos vazias.

Lembrei dela ao ler o poema de Drummond que comentei no post anterior, quando na primeira estrofe ele diz a seu respeito:

presumo estar livre de tudo.

É uma presunção porque estar livre de tudo significa encontrar-se cativo de si mesmo, de sua própria história, fantasmas, perguntas... O poema de Drummond dá conta disso exatamente. E com minhas palavras cheguei a essa mesma intuição, relacionando plenitude ao vazio no qual a gente se encontra livre para criar, tornando a própria angústia da solidão e do abandono a si mesmo uma fonte de poder - comedido e temperado pela dimensão da falta.

Jogos de palavras... vai entender! Estar pleno no vazio. Ter poder na falta...

O que pouca gente entende, acho, e talvez, nesse caso, com falta de modéstia, é que a liberdade não é uma condecoração, uma conquista, um adorno. Antes, a liberdade é uma condição na qual alguém se reconhece e a partir da qual se situa no mundo, nas relações e diante de si mesmo. A liberdade começa na consciência de que entre si e qualquer coisa, em princípio e a rigor, não há nada além daquilo que se coloca nesse vazio. Há algo de trágico nessa radical liberdade que se exerce não diante de escolhas, mas da mais pura e absoluta falta delas, porque na plena possibilidade de criar (o que só então torna-se necessário) para escolher. O princípio da liberdade não está no encontro com algo fora de si mesmo, mas na condição de radical solitude em que cada sujeito está lançado nesse mundo.

E a primeira coisa a se fazer nesse estado de coisas é amar. Por isso o fantasma de Drummond responde todas as suas perguntas com a misteriosa frase:

Amar, depois de perder.

O amor, então, se torna fim e objeto de liberdade. Isso muda tudo. Sempre achei que ao amar a gente age. Mas é o contrário. Se age para amar. E esse impulso primeiro que leva à ação a gente tem de achar outro nome... Talvez seja o desejo que, imbuído de liberdade, almeja o amor.

(Isso tudo apesar da verdade que os versos de Drummond teriam se escritos assim: Perder, depois de amar.)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Mais uma de Drummond

Em sua antologia, Drummond dedica uma série de poemas ao tema Famílias que me dei. São poemas domésticos, mas nada domesticados. Impressões da infância, juventude, velhice acerca dessa condição - a família - de intimidade e estranhamentos, os mais básicos de toda e qualquer gente.

Lá pelas tantas, um poema intitulado Perguntas. Pérola entre pérolas, a polidez desta se destaca justamente pela figuração dos fantasmas, estes seres tão dados aos cantos de doces lares. É a seu fantasma que o poeta lança suas perguntas:

"Numa incerta hora fria
perguntei ao fantasma
que força nos prendia,
ele a mim, que presumo
estar livre de tudo,
eu a ele, gasoso,
todavia palpável
na sombra que projeta
sobre meu ser inteiro:
um ao outro, cativos
desse mesmo princípio
ou desse mesmo enigma
que distrai ou concentra
e renova e matiza,
prolongando-a no espaço,
uma angústia do tempo."

Uma relação estendida no tempo, assentada num princípio que, embora sugira uma aliança, partilha antes de tudo a angústia. Presos um a outro num mesmo e "cativante" enigma que, se bem entendido, é um puro apelo ao amor.

"Perguntei-lhe em seguida
o segredo de nosso
convívio sem contato,
de estarmos ali quedos,
eu em face do espelho,
e o espelho devolvendo
uma diversa imagem,
mas sempre evocativa
do primeiro retrato
que compõe de si mesma
a alma predestinada
a um tipo de aventura
terrestre, cotidiana."

Evidencia-se o duplo, essa singular relação nossa conosco mesmo, em cuja distância tão real quanto imaginária, cabem todos os mundos possíveis. O espelho fornece essa presença tão primeira e outra de si mesmo, que enceta o diálogo ao fantasma do poeta, este que lhe envia perguntas e divide segredos frente o reconhecimento que sua própria alma é entregue a condições tão terrestres e cotidianas: uma alma de carne e osso.

"Perguntei-lhe depois
por que tanto insistia
nos mares mais exíguos
em distribuir navios
desse calado irreal,
sem rota ou pensamento
de atingir qualquer porto,
propícios a naufrágio
mais que a navegação;
nos frios alcantis
de meu serro natal,
desde muito derruído,
em acordar memórias
de vaqueiros e vozes,
magras reses, caminhos
onde a bosta de vaca
é o único ornamento,
e o coqueiro-de-espinho
desolado se alteia."

A pergunta revela finalmente um segredo acerca de itinerários que ao qual a alma errante do poeta o leva, e que pelo jeito, o leva à força. São lugares passíveis de memória. Aliados a fatos, acontecimentos, percepções e sentimentos de algum tempo - aquele mesmo, ao qual se agarra o homem com angústia.

"Perguntei-lhe por fim
a razão sem razão
de me inclinar aflito
sobre restos de restos,
de onde nenhum alento
vem refrescar a febre
deste repensamento;
sobre esse chão de ruínas
imóveis, militares
na sua rigidez
que o orvalho matutino
já não banha ou conforta."

O que espezinha o poeta é uma geografia, definitivamente. Algo de saudade? Um sofrimento? Pura e lancinante nostalgia? Um lugar que lhe falta não como distância, mas porque na sua escassez? O poeta repensa febril e, pelo que parece, a essa altura, o fantasma que reflete no espelho já é tão outro que, na sua intimidade, lhe brota o mais terrível estranhamento.

E finalmente, ocorre-lhe, ao fantasma, responder. O poema encerra pondo luz sobre o que, por todo o tempo, ressoa confuso nas perguntas do poeta: o amor, o amor, o amor.

"No voo que desfere,
silente e melancólico,
rumo da eternidade,
ele apenas responde
(se acaso é responder
a mistérios, somar-lhes
um mistério mais alto):

Amar, depois de perder."