sexta-feira, 5 de julho de 2013

Foi num sábado

ERA SÁBADO DEZOITO DE AGOSTO DE DOIS MIL E UM, ainda havia no banheiro o remanescente de um antigo aquecedor de água, preso ao teto, acima do vaso sanitário. A coisa era um trambolho tão absurdamente grande que um quarto do pouco ambiente livre do banheiro era ocupado pelo troço, com seu aspecto sujo, engastado e poeirento porque tínhamos um nojo contumaz misturado à raiva do apetrecho que, para piorar, rosnava de madrugada. Desde que ocupamos o apartamento, nos propomos a retirar aquilo dali. Quer dizer, eu, como o "homem na casa", era o que os olhares insinuavam, deveria faze-lo. Porém, envolvia um técnico que pudesse nos garantir que ao tira-lo não se comprometeria nada do sistema hidráulico do banheiro. E além disso, precisávamos de alguém que soubesse lidar com encanamento de cobre, além de gente forte o suficiente para manejar tudo aquilo. Ou seja, definitivamente não era algo que minhas habilidades davam conta e nem meu bolso, bolsista que era. Situação terrível a que, por meses, nos expomos, gerando conflitos a cada vez que uma cabeça esquecia no negócio. Conversei com vizinhos e só piorou a situação, pois um a um se surpreendia dizendo coisa assim: “nossa! vocês ainda têm isso no banheiro?” ou “sério? deixa eu ver isso!” e ao ver, “meu deus! tu tens que tirar isso daí!”. Foi que foi, e finalmente juntei ímpeto e contatos suficientes para numa semana encarar a coisa de frente. Foi no tal sábado, e muito mais simples que imaginei. Ao meio-dia, abandonei a coisa no corredor do prédio, a frente da minha porta num “depois vejo o que faço com isso”. Não durou dez minutos, batidas à porta. Era o síndico. “Joe, o pessoal tá reclamando desse negócio aqui no corredor. Não dá para deixar assim”. Eu estremeci, e toda as boas relações com condôminos junto comigo. “Puxa! Mas é só para eu me organizar... eu não tenho ideia de o que fazer com isso agora!”. A resposta foi peremptória, “é, eu entendo, mas não pode ficar aqui”. Decidi naquele momento ir ao supermercado. No caminho, pensei comigo, vejo o que posso fazer. Ao passar por baixo do viaduto da linha de trem urbano, numa das avenidas principais da cidade, avistei uma senhora com dois filhos numa carroça carregada do que eu tinha por lixo. “A senhora pega lixo?”. “É, moço, a gente recicla”, me respondeu sugerindo correção. “Olha, eu acabo de tirar um antigo aquecedor de água do meu apartamento... Talvez te interesse.” Não disse nada. Não lhe interessava. “É um aquecedor bem velho, acho que nem funciona mais...” E foi assim, eu buscando jeito de descrever a coisa para seduzir a senhora, mas ela não me dava a menor atenção; até que eu disse algo assim “e tem bastante coisa de metal”. No mesmo instante, ela olhou pra mim. “Onde tá isso?”. “Aqui ao lado, na Clemente José Barreiro”. “Mas onde é, certinho assim?” “Olha, é há 50 metros daqui, na próxima esquina”. “Mas, a casa?, onde fica?” “Então, senhora, é ali, na esquina da Clemente com essa avenida aqui...” “Ah! O prédio do lixo bom?” Disse isso de tal modo que eu entendi que ela havia me entendido, com a sua geografia, que era absolutamente outra que a minha, embora a mesma cidade, ruas e lixo. Eu não sabia da moral do lixo meu prédio. “Do lixo bom?”, perguntei. “É! Pelo que tu tá me dizendo, acho que ali onde tem uma grade grande, sempre com coisa boa pra catar e miquinho.” “Miquinho?” “É, ué! Com comida!” Lembrei então das sacolinhas amarradas para o lado de fora do cesto de lixo. “É, senhora, isso mesmo. É ali.” Eu dizia isso sob o abalo da diferença misturado à comoção de quem enxerga o óbvio pela primeira vez. Ao chegar ao prédio com ela, pedi que esperasse porque tinha de descer a coisa toda. Pedi auxílio para o síndico e fomos nós. Corri até a parede de elemento vazado da entrada do prédio e gritei para ela esperar um pouco, temia que desistisse. Quando apareci na porta com o sindico trazendo todo aquele negócio (era redondo como dois bujões de gás em continuo, e pesava o mesmo tanto). Ao ver o troço, a senhora se espantou e me surpreendeu de novo: “mas moço! eu não compro, só cato!” “Não, senhora, quero que você leve! É seu.” “Mas, moço, esse cano todo é cobre.” “Ah, sim, é mesmo. O encanador me disse”, e só então eu situei aquilo numa relação outra de valores. “Mas, ó senhora, esse negócio me encheu tanto o saco que eu só quero me livrar dele.” Ela ajeitou a coisa na carroça como pode, me agradeceu e pegou caminho, acho que na pressa de se antecipar a um possível arrependimento meu. Eu, livre da coisa, nunca mais bati a cabeça no banheiro, mas também porque a cabeça nunca mais foi a mesma.

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