Sua primeira solidão foi
aos oito anos. Deixou o grupo escoteiro no fim de tarde morna, e faria
novamente o caminho à casa, por si mesmo. Usaria dois ônibus, o que tornava
algo complexo. Deveria primeiro ir até o centro da cidade, tomando um ônibus
ali mesmo, ao lado da rodoviária, que avizinhava a sede do grupo escoteiro. Uma
vez no terminal do centro, um segundo ônibus deveria ser pego. Este o deixaria
a uma esquina de casa, e por ter feito duas ou três vezes esse mesmo
itinerário, sentia-se seguro. Seguro o suficiente para, naquele dia, dar-se
liberdades a uma distração que o fez reparar mais na paisagem.
O trajeto até o centro era
o mais plano de uma cidade de poucos altos e baixos. O ônibus passava em frente
ao sexagésimo segundo batalhão de infantaria, que impressionava os olhos
meninos. O contraste de paredes imponentes, caiadas, reluzindo ao sol, com a
interdição opaca de sombras verdes militares, suscitava-lhe imaginação. Em
seguida, o trecho da avenida com canteiros centrais pontilhados de palmeiras
princepescas dava com a enormidade catedral da arquidiocese. A forma redonda da
igreja com telhado de capacete espacial lhe sugeria outras tantas fantasias a
respeito das autoridades.
No terminal do centro, o segundo
ônibus do trajeto estava roncando sem pressa, posicionado na plataforma. Àquela
hora da tarde de sábado tudo ali era vagar e sufoco de diesel queimado.
Demoraria, como nas outras ocasiões, alguns minutos para o ônibus partir. O
tédio da espera, dessa vez, contudo, não lhe ocorreu. Não deu tempo. Porque ao dar
os primeiros passos em direção à plataforma, reparou na praça ao lado do
terminal. Não a tinha notado ainda, e o pequeno chafariz ao centro lhe
interessou particularmente. Parou. E o chafariz lhe conduziu a atenção ao homem
que ajudava a criança se equilibrar na murada, ao lado do casal trocando
sorrisos, sentindo o cheiro provável de pipoca exalado por aquele que agora as
preparava no seu carrinho de latão, cercado de voos curtos e atrapalhados das
pombas da praça... Um mundo lhe nascia ali mesmo, subitamente.
Certificou-se mais uma vez
do ônibus estacionado, e conferiu as horas do grande relógio suspenso no teto
do terminal. Tinha um tempo mais de espera, acreditou. Avistou novamente a
praça como que agradecendo o ensejo apenas, porque sua atenção agora não queria
mais surpresas. O olhar afinava pálpebras investigativas. Virou-se para a rua a
suas costas: não seria aquela a que conduzia à praça do Hotel Colón? Daria
tempo para tirar a dúvida? Não seria perigoso? Poderia fazê-lo? Mas deveria
fazê-lo?
Passos tão decisivos
quanto apressados. O menino sentia a barriga formigando; o que era fome cedeu à
comoção de uma aventura de quadra e meia. Decidiu que o tempo seria suficiente
para ir até a esquina apenas, para conferir se ao dobrá-la estaria mesmo lá, em
frente à praça, o hotel cujo prédio de modos antigos lhe fazia pensar em
preto e branco. Atravessada a rua grande, alcançou a esquina, espichando-se e
estancou. Sabia. Era ali mesmo. E lá estava o hotel de paredes marrom
desbotado, com bandeiras reverentes, enquanto rapazes uniformizados facilitavam elegantes o ir e vir de malas dos carros estacionados frente à
fachada com a grande vitrine revelando o café em que toda sorte de gente se
punha a espera de uma partida, assim como ele agora...
De um salto lhe ocorreu a
deslembrança do tempo. Virando-se, constatou, no mesmo instante, que seu ônibus
já não mais lá estava. O desespero ganhou a fome e a comoção aventurosa, instalando-se no íntimo. Sem ocorrer-lhe a possibilidade de esperar um próximo ônibus,
sua atenção se voltou toda a pensar em possibilidades outras de tomar o rumo de
sua casa. Foi ao telefone público que só agora se lhe mostrava logo ali, na
outra esquina. Discou o três, três, cinco, cinco, cinco, sete, mas teve de
repetir a operação numa ligação à cobrar, porque não tinha "fichas" consigo.
A maneira de fazer a ligação à cobrar estava descrita numa plaquinha junto ao
telefone. Mas ficou sem saber se fizera corretamente ou não, porque não teve
sucesso. E mais, o que diria? Como explicaria a perda do ônibus?
Estava agora, de fato, por
sua própria conta. O desespero já lhe era um sentimento anterior ao que agora
tomava forma de uma necessidade premente de responder à situação. Melhor assim,
pensou, sem telefonemas, e no mesmo instante, se lhe afigurou o raciocínio
seguinte a este, numa lógica orgânica, imediata: faço eu mesmo o caminho até em
casa.
Foi nisso que Solidão
chegou. Se apresentou serena, ainda que muito séria e quieta. Sugeriu ao menino
que desenhasse na mente o rumo que o ônibus faria, e lhe perguntou: você seria
capaz de fazer esse caminho comigo? A afirmação foi veemente, apesar do receio
pela companhia. O menino desconfiou de Solidão desde a primeira vez que a viu.
O trajeto era simples até.
Mas a nova companhia de estar por conta agigantava a paisagem conhecida. As mediações de um corpo no mundo fazem-no pequeno. Além do que, os passos aos oito anos são especialmente curtos. Mas o menino estava confiante no
próprio rumo, ensaiando-se naquela parceria solitária.
* * *
Seguimos pela rua até
a ponte do Rio Cachoeira, onde reparamos seu cadáver triste. A aparência
ensimesmada do rio, pela falta de correnteza, e o cheiro doce de podridão contrastavam
com as fotos antigas da cidade que vimos no colégio, mostrando pessoas à
margem, brincando e pescando. Sem comentar nada da impressão causada, adiantamo-nos um pouco a Solidão, e deixamos para trás a ponte. Rumamos pela Dona
Francisca, uma das vias mais extensa do império, como também disseram no
colégio. Ela atravessou cidades um dia, mas caminhamos dela apenas uma primeira
subida bastante leve, em curva, em cujo topo beira até hoje a mata do morro do
Boa Vista, que corta a cidade com uma verdura úmida e esperançosa. Solidão, agora novamente junto de nós, ficou impressionada, notava-se bem.
Logo adiante, dobramos à direita, na Castro
Alves, onde havia na esquina uma mercearia, e a paisagem ali cheirava a pão. A Fome
quis nos fazer companhia, mas estávamos tão imersos em nosso itinerário que
desistiu.
A rua Castro Alves, aos
oito anos, era uma reta extenuante. Insinuava uma subida tediosa, em cujo topo
estava a esquina aguda do inicio da Água-Marinha, a nossa rua. Foi o trecho em
que Solidão mais se apresentou, apesar e talvez justamente pela proximidade de
casa. Quanto mais perto de seu fim, a Castro Alves mais se tornava erma,
dividindo as margens novamente com a mata. O Medo acenou. Apressando os passos, o menino começou a dar pequenos saltos que
foram lhe instigando uma inusitada vontade de voar. Entre pequenos saltos,
contraia o corpo e sentia que assim podia retardar o próximo salto, e assim
sucessivamente, permanecendo mais tempo no ar. Ah, isso facilitaria muito a chegada
em casa!
Ainda extasiado pela descoberta, num sentimento de dominar a nova técnica, o menino experimentou um salto pronunciado. Perdeu, porém, a noção da força aplicada,
e seu corpo se projetou justo em direção ao bueiro destampado da rua que
recentemente ganhava pavimentação. Desesperou-se! O salto já havia sido dado, não
teria mais retorno. As contrações do corpo não o ajudavam a mudar a direção,
apenas retardavam o instante daquela duração agônica de queda na incerteza de um buraco
certo diante de si. Lá adiante, a casa ainda pode ser vista. Foi Solidão que a reparou. O menino pode ouvi-la dizer “ali, tão perto! nunca mais”, quando a escuridade
nos engoliu por inteiro.
Um comentário:
no começo minha mente lambeu imagens de são bento, depois me veio fácil joinville. uma das menções mais belas e honestas dessa cidade que há muito não via ou lia por aí, nas internetes, que seja. Comovente. ainda mais quando resta ainda a recente lembrança de uma visita que me fizestes. Voltastes, então. Que coisa! Vinte e poucos anos depois, vistes até a mim, ao irmão mais novo que, por casualidades da vida, aconteceu de retornar ao lugar, ao pé do morro, no fim da erma Castro Alves... rua das lembranças da família... que vão se tornando minhas também agora. não lembranças da infância, é verdade, mas da vida adulta, mais difícil, com aventuras mais sérias. O que fazem os lugares com a gente, meu irmão? o que seria da gente sem os espaços que involuntariamente conquistamos ao nos largar em aventuras de meia-quadra?
abraço fraterno
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