segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Breve Couto ao Mia

(Eu) Mia. Quer dizer, posso lhe chamar de Mia? Ah, obrigado. O seu Jerusalém foi publicado no Brasil (Cia das Letras 2009) com o título Antes de Nascer o Mundo? Você está por detrás disso? Por que esse título?

(Ele parecia calmo agora. Chegou contrariado de dentro do armazém do cais, onde recém sofrera uma entrevista um tanto caótica, com gente lhe perguntando sobre o seu escrever, a guerra, a democracia da África, assim despudoradamente - e com bem mais que apenas três pessoas a sua volta, o que de início ele já declarou a dificuldade. Tratava-se de uma situação artificial demais para alguém que escreve Terra Sonâmbula... Mas agora estava calmo. Apenas a perna: ela balançava insistentemente para frente e para trás. Pareciam querer por-se a caminho, mas eu não o percebi de todo naquele momento.)

(Mia) Esse título... sim, acho que está no texto. Não foi difícil escolhê-lo.

(Ele já dava por respondida a pergunta.)

(Eu) Mia... por favor, fala mais, agora somos só eu e você aqui.

(Ele ponderou. Olhou para os lados. Atravessou o Guaíba numa mirada. Soltou um fôlego de alívio, eu acho. Não parecia aborrecido, estava mais para abensonhado...)

(Mia) É. Na verdade é bem diferente e, ao mesmo tempo, nem tanto. Jerusalém é o nome de um não-lugar. Um lugar que é todo uma negação. É como se a própria fuga achasse um lugar apropriado para permanecer, sem movimento, sem direção. Ali, ela é. Mas "antes de nascer o mundo" remete ao narrador personagem do livro, o Mwanito. Jerusalém, quem a funda, é o pai (risos, acho que por conta da cacofonia). E esse mundo que está por nascer é de Mwanito, em primeira mão. Esse deslocamento de sentido que o título sugere na versão brasileira é interessante. Completa algo a Jerusalém.

(Eu) É bom ouvir você falar.

(Mia) Por que? (risos).

(Eu) Eu me emociono em perceber sua busca por expressões. Imagino seu laboratório interior durante a escrita, cuja produção é tão intensa. Eu já lhe disse que o seu texto me devolveu a minha língua-mãe?

(Mia) Você havia rompido com ela?

(Eu) Não, acho que era coisa de menino. Não a tinha percebido ainda tão... "materna". Minha mãe foi o único lugar que eu tenho certeza que estive. E, de repente, sinto o mesmo em relação a minha língua... Decidi me tornar fluente em minha mãe...

(Ficamos em silêncio durante um pouco. Eu fumei um cigarro e petisquei alguns camarões. Enquanto isso, ele elogiava a cachaça que eu o havia presenteado e que ele havia servido para nós ali mesmo.)

(Eu) Mia. Você escreve sobre as mulheres de uma maneira tão triste. Quer dizer, estou pensando na Marta de Antes de nascer o mundo (e haveria outra?), e na tristeza dela. O que você me diria se eu lhe dissesse que encontrei na forma que você a constrói uma espécie de...

(Mia) Fundamento?

(Eu) Não. Eu chamaria de revelação...

(Mia) Ah, sim! Você é teólogo até quando faz entrevista? (Risos) Mas é isso mesmo. Se revelação ou fundamento, tanto faz, estou pensando no caráter mítico da mulher a que o texto em torno de Marta remete. Ela é um personagem síntese da experiência, assim como eu a percebo, do ser mulher em Moçambique. Aliás, vamos falar de Moçambique, certo? Eu não escrevo da África. Essa singularidade não existe.

(Eu) Certo, eu concordo contigo, e gosto dessa percepção modesta que você, na verdade, nem precisaria me solicitar, porque isso também está no seu texto.

(Mia) Ah, obrigado! Eu me sinto mais leve assim! As pessoas me dirigem a todo momento perguntas e observações sobre a África, mas eu que sou de lá desconheço essa grandeza!

(Eu) Mia, quero ler um trecho de seu livro:

Sob o céu africano volto a ser mulher. Terra, vida, água são do meu sexo. O céu, não, o céu é masculino. Sinto que o céu me toca com todos os seus dedos. Adormeço sob a carícia de Marcelo.  E escuto, longe, os brasileiros acordes de Chico César: "Se você olha pra mim eu me derreto suave, neve num vulcão...".
Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos.
Mia COUTO, Antes de nascer o mundo, (Cia das Letras, 1.reimp., 2010), p.141. 

(Mia) Belo. Fui eu quem "escreveu" isso? (Risos).

(O que ele seguiu dizendo foi maravilhoso, assim num tratamento de si mesmo como um outro, ora terceira pessoa, ora segunda. Tanto que eu me perdi de anotar. Lembro-me apenas dele frisando ao final, numa conclusão inesperada: o autor é sempre menor que seu texto; é assim que vive a literatura.

------------------------

Entrevista imaginária cedida pelo biólogo e escritor moçambicano Mia Couto, no cais de Porto Alegre, 11 de novembro de 2012, entre 6 e 7 da tarde, ouvindo Mayara Andrade, bebericando cachaça de rolha e petiscando camarão seco no vatapá. (Não, não tinha chima nem churras).





Nenhum comentário: